SOBRE O TÍTULO
A escolha do título
“ordem, poder e loucura na perspectiva de Machado de Assis” é uma influência do
pensamento de Foucault. O filósofo abordou em seus estudos a questão do Outro e ele próprio tentou sair deste Mesmo que chamava positivismo. Para ele,
Marx era um continuador de Augusto Comte, eles estavam num Mesmo. Assim, nessa tentativa de sair desse Mesmo apontei como sendo os símbolos, a representação, a loucura, a
ordem, a reclusão, a disciplina, e o poder na perspectiva de Machado de Assim,
não que o presente trabalho não vá tratar da visão de Foucault e Chartier, mas
possibilitar a compreensão de que Machado de Assis, anterior a estes, não fez
uma mera narrativa – até por que suas obras são extremamente introspectivas e
denunciam o ego humano – mas uma avaliação sobre esses temas abordados por
Foucault e Chartier posteriormente.
INTRODUÇÃO
O presente
trabalho se propõe a fazer uma análise da obra literária “O Alienista” do
escritor Machado de Assis, tendo como perspectiva a visão de Roger Chartier
sobre as “práticas” e “representações” coletivas, as quais ele trabalha em
livros como a “Historia Cultural” e “A Beira da Falésia”. Além desse autor,
será trabalhado os conceitos de “loucura e razão”, “saber e poder”, e “práticas
disciplinares” de Michel Foucault, tendo como fontes as obras “A História da
Loucura”, “Vigiar e Punir” e “Microfísica do Poder” do mesmo autor.
O
Alienista é um conto de duração um pouco maior que os comuns, foi escrito pelo
consagrado escritor realista Machado de Assis. O Autor nasceu no ano de 1839,
no Rio de Janeiro, trabalhou em diversos jornais e revistas como redator, foi
fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Suas primeiras obras como “A
Mão e a Luva” tinham muita influencia do romantismo, mais tarde em obras como
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e “Dom Casmurro” será
considerado escritor realista. Em “O Alienista” Conta a história de uma cidade
pequena de nome Itaguaí, onde chega um médico que consegue da câmara dos
vereadores a construção de uma casa onde seriam tratados os loucos. O médico de
nome Simão Bacamarte “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do
Brasil, de Portugal e das Espanhas”[1]
coloca as pessoas as quais considera loucas na Casa Verde, inclusive sua
mulher. A população protesta contra a Casa Verde. O governador junto a
Bacamarte passa a prender os revoltosos e pessoas de oposição. No final das
contas o alienista reformular sua tese sobre a loucura, liberta os “insanos” e
se tranca acreditando ser o único louco na cidade.
Roger
Chartier nasceu em Lyon, na França em 1945. Faz parte da terceira geração da
Escola dos Analles. Dedicou-se a trabalhos em diversas linhas como história das
instituições de ensino e das sociabilidades intelectuais, história dos livros e
das praticas de escrita e leitura, análise de política, cultura e cultura
popular, além de reflexões sobre o ofício do historiador. Foi diretor da Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris. É um dos historiadores mais
conhecidos. Suas contribuições foram significativas para os estudos da história
cultural. Em seu livro “A História Cultural: entre as práticas e as
representações” analisa como os indivíduos interpretam as representações
simbólicas, dando ênfase as leituras coletivas. Em sua perspectiva é possível
entender as relações entre espaço, tempo e história. Assim sendo, para se
entender um autor é preciso entender a realidade em que viveu, da mesma forma
os sujeitos fazem suas leituras de formas diferentes uns dos outros.
Michel
Foucault é um dos mais conhecidos intelectuais da atualidade. Nasceu no ano de
1926 em Poitiers e morreu em 1984, em Paris. Foi professor da cátedra de
História e Sistema de Pensamentos. Em
suas obras é possível perceber as influencias de Jean Hipollite, Louis Althusser, Marx – tendo fortes
contradições – e Heidegger, além de,
claro, Nietzsche. Foucault era homossexual, portador do vírus HIV, juntamente
com seu parceiro. Aos 58 anos cometeu suicídio. Poucas pessoas comentam essas
particularidades, mas como foi dito por Chartier é importante conhecer a vida e
a realidade do autor para entendê-lo. Possivelmente suas obras sejam reflexos
de sua vida, em quase nenhum momento são dadas propostas de mudança da
sociedade, pois toda mudança parece ser formada a partir de um discurso e de um
poder. Uma história que não possui sujeitos responsáveis por mudanças, mas
apenas descontinuidades[2]
provocadas por acontecimentos[3].
Sua realidade também é importante para que se compreenda sua obra. Viveu num
período em que as universidades eram tomadas por marxistas de diversas correntes
– trotskista, stalinista, maoísta – sendo poucos os pesquisadores que não
seguiam essa linha, em outras palavras a academia era muito politizada,
surgindo atritos entre estruturalistas e “neokantistas”. Com a segunda Guerra
Mundial, as polemicas sobre os gulags o marxismo sofreu uma crise deu força a
autores de cunho pós-modeno. Foucault tem uma obra riquíssima, e influencia
bastantes os intelectuais atuais. Nesse trabalho será usada para analise do
livro de Machados de Assis os livros “A História da Loucura”, “Microfísica do
Poder” e “Vigiar e Punir”. No primeiro o autor faz uma excelente análise do
surgimento da psiquiatria, apesar de usar o termo história prefere arqueologia,
já que acredita não haver uma continuidade que faz surgir essa ciência, mas que
diversos acontecimentos que vão colocando os loucos num local que seria o mais
adequado. Mas não vê como um progresso, apenas como resultado da formação de
diversos saberes[4].
Não é apenas uma história do espaço físico do sanatório, nem das práticas
médicas, mas uma arqueologia[5]
dos sistemas de pensamentos e da produção do poder. Faz algo semelhante em
“Vigiar e Punir”, sendo uma história do pensamento em torno das penas. Em
“Microfísica do Poder” apresenta vários ensaios e entrevistas falando das várias
obras suas onde escreve sobre as formas de poder, sua relação com o saber, rede
de poder[6],
e as tecnologias usadas pelo Estado e instituições para obter controle sobre a
população, como é o exemplo do Panopticon de Bethan.
REPRESENTAÇÕES DO PODER: IMAGINÁRIO
COLETIVO
Em “O
Alienista” as representações do poder se dão de diversas formas. A população se
apropria dos diversos signos impostos pela câmara e por Bacamarte. O próprio
Bacamarte é um signo, homem branco, de família abastada, um “nobre da terra”.
Em uma sociedade onde os símbolos nobiliárquicos valem mais que o dinheiro –
como ainda era o Império –, Bacamarte, em si, já é detentor de poder. Mas isso
não bastaria para que conseguisse fazer seus empreendimentos em torno da
loucura. Assim o título de médico lhe concede as condições de fazer suas
experiências – sem levar em conta a argüição de um imposto cobrado sobre a
população para manutenção da casa.
As representações de conhecimento e
ciências não vêm apenas desses atributos são necessárias práticas
representativas e gestos que vão dando forma ao poder de Simão como sendo o
único capaz de resolver os problemas da insanidade. Os termos e jargões médicos
vão criando no imaginário dos sujeitos leitores as “utensilagens mentais”[7],
pois segundo Roger Chartier, em “História Cultural” são necessários signos
lingüísticos do poder para se dar a dominação.
Em alguns momentos do conto, as leituras
sobre as representações de dominação e conhecimento vão se dando de forma
variadas, nem todas pessoas enxergam no Doutor essas expressões. Outras pessoas
que antes aceitavam o seu poder começam a resignificá-lo. Foi preciso novas
práticas que fortalecesse a imagem de Simão no imaginário coletivo. Chartier
trabalha em sue livro a questão da leitura pelos sujeitos, fazendo a crítica à
concepção de cultura global e valorizando as dessemelhanças na interpretação
dos signos dos sujeitos, foi assim que algumas pessoas negavam o poder do
alienista. Para solucionar esse problema o Doutor internou sua mulher. Essa
prática significava a seriedade e compromisso do seu trabalho, além disso,
significava o medo, pois ficava evidente que qualquer pessoa poderia ser
considerada louca e acabar preso no sanatório.
Em outro
sentido, a Casa Verde se torna signo de opressão. As pessoas olhavam o
sanatório como um lugar de opressão e medo. Como o próprio Chartier diz a
dominação simbólica se apresentam com a violência e o terror. Na história
existem inúmeros exemplos de símbolos que associavam o medo e a pessoa do
poder. Assim fizeram reis com suas estátuas, a igreja com imagens do inferno,
etc. Quando ocorre a rebelião as pessoas querem derrubar o local. Por mais que
o problema esteja nas práticas realizadas através do sanatório, é a sua imagem
física que atormenta as pessoas, por isso dever ser destruído.
Essas
análises também contribuem para a compreensão da relação tempo, espaço e
história, pois é possível enxergar que a consciência das pessoas tem formas
diferentes nas mudanças de espaços e tempo, assim a própria história tem um significado
diferente nas diferentes épocas e lugares. Chartier trabalha isso nos seus
trabalhos de história intelectual.
DE SANATÓRIO A PRISÃO
“A
eliminação do suplício é, assim, substituído por métodos de assepsia: a
criminologia, a eugenia, a exclusão dos ‘degenerados’”
(FOUCAULT,
Michel, Microfísica do poder. P.
145.)
Na arqueologia que
Foucault faz da psiquiatria na idade clássica, a loucura era vista inicialmente
como qualquer coisa que perturbasse a ordem, assim, uma ladrão por não seguir
as regras poderia ser considerado insano, um homossexual ou mendigo, dessa
forma, seriam internados juntamente com os loucos. Não havia nenhuma relação
entre hospital e medicina como disse Foucault:
Vê-se,
assim, que nada na prática médica desta época permitia a organização de um
saber hospitalar, como também nada na organização do hospital permitia
intervenção da medicina. As séries hospital e medicina permaneceram, portanto,
independentes até meados do século XVIII.[8]
Para Foucault, isso se devia a necessidade de retirar das
ruas todos que incomodassem, a burguesia como classe emergente se incomodava
com a pobreza. Quando a nobreza e o clero estavam em plena dominância o pobre
era sinônimo de sua superioridade e a caridade as enobrecia ainda mais. Por
isso vai ocorrer uma forma de reclusão essencialmente burguesa e outra
hierática com o objetivo de usar esses espaços para caridade. Ainda não há aqui
a preocupação com a loucura, no que diz respeito ao seu tratamento, apenas uma
higienização dos espaços. Só mais tarde é que os loucos vão sendo separados dos
demais “desprezíveis”.
No livro
de Machado de Assis ocorre o contrário. Simão Bacamarte tem uma preocupação
evidente com a loucura, critica o governador por deixá-los a míngua, tendo que
viver esperando a morte em suas casas sem nenhum tratamento adequado. O governo
parece pouco interessado em internar os loucos, isso não parecia incomodar
tanto os cidadãos. Ora se for certo o que Foucault diz sobre o caráter burguês
dos internamentos na Europa, então no Brasil Império, onde a burguesia era
quase inexistente, tirar os mendigos, loucos, e outras espécies de indesejáveis
era menos importante. Mas Bacamarte consegue convencer os líderes com a
proposta de imposto. Seu interesse era estudar a loucura, conhecer cada fenômeno,
descrevê-los e encontra a cura de todos os males, a panacéia.
O
sanatório, ou a Casa Verde, ganha caráter de prisão quando ocorre a rebelião da
população pela sua derrubada. Ora, muitos levantes ocorreram no império por
essas datas, muitos de caráter separatista, todos eles deixaram as autoridades
em alerta. O mesmo ocorreu na cidade de Itaguaí, a câmara foi ocupada e os
revoltosos instalaram um novo governo. O Governador, que veio ter com
Bacamarte, viu no seu poder uma oportunidade de controle da população, em vez
de atender a população concede apoio ao alienista. Esse também não hesitou em
usar da força para continuar seus empreendimentos, prendeu seu principal
opositor. Daí em diante qualquer desvio de conduta era encarada como loucura,
sendo passível de internamento.
Para
Bacamarte, colocar as pessoas na Casa era motivo de ciência, queria compreender
a loucura, achava que era “uma ilha em meio ao oceano”[9],
logo veria que era “um continente em meio ao oceano”[10].
Colocavam-se as pessoas que cometiam qualquer desvio era por que se interessava
pelo fato. Para o governador aquilo era uma forma de manter o controle, seja
qual fosse o interesse de Simão, a Casa estava funcionando em causar o medo não
só nos delinqüentes, mas nas oposições políticas. Nesse sentido ambos os
interesses estavam sendo contemplado.
Esse
pensamento reforça a visão de Foucault de que a burguesia e nenhuma classe são
agentes de transformações históricas. As mudanças que ocorrem vão sendo
forjadas no interior de discursos que produzem poder[11].
Além de que são acontecimentos que possibilitam mudanças não o mero interesse
de classes, como foi na Europa em que era preciso fazer uso dos leprosários já
obsoletos, ao mesmo tempo em era necessário higienizar a cidade, e controlar a
população. No caso de Itaguaí, foi preciso o interesse do médico em estudar a
loucura e posteriormente das autoridades em obter impostos.
Em Itaguaí
ocorre então, como já foi dito, o inverso do Hospital Geral da França. Neste
primeiro houve o interesse por parte do estado em controlar a população e usar
o espaço para prender os indesejáveis, só mais tarde a loucura ganharia um
local de estudo e cura. Naquela, em princípio o interesse era de estudar a
loucura e cura os insanos, mas tarde vai se tornar um local ligado a pena de
crimes.
Assim com
em Vigiar e Punir o Estado faz uma economia das penas, onde aquele antigo ato
de supliciar os criminosos na frente da população para lhe causar medo tinha
sido substituído por um sistema penal menos arbitrário e que levasse em conta a
proporcionalidade da pena com o crime cometido. Ora, fuzilar e enforcar os
revoltosos contra o império parecia já não surtir tanto efeito, pois servir-se
de pena máxima - retirar a vida do
criminoso – não contribuía para controlar a população. Era preciso um sistema
no qual o indivíduo pense nas conseqüências dos seus atos antes de praticá-los.
Foucault, conta que existia uma preocupação por parte das autoridades em fazer
com que o indivíduo que cometesse atos contra a ordem pensasse sobre as
vantagens e desvantagens de cometer tal ato, ou seja, cometer um saque
acarretaria enriquecimento, mas em compensação se tal crime fosse descoberto a
recompensa seria inversamente proporcional. Em Itaguaí, esse sistema não foi
tão desenvolvido como na Europa, onde cada crime tinha uma pena específica, mas
o fato de ir parar na Casa Verde por qualquer ato que não fosse considerado
íntegro, sem dúvida contribuía para o controle por parte do estado. Assim, as
penas não ganharam formas relacionadas com o tipo de crime na cidade Itaguaí de
forma concreta, onde cada crime seria pago de acordo com o grau de recompensa
que o sujeito acreditava ter, num “jogo de sinais-obstáculos”[12],
mas haveria duas formas de penalidade: a execução, comum para os líderes
revoltosos; e a internação para os menos perigosos. Houve uma mitigação das penas.
“...
foi preciso esperar o século XIX para saber o que era a exploração; mas talvez
ainda não se saiba o que é o poder. E Marx e Freud talvez não sejam suficientes
para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e
invisível, presente e oculta, investida em toda parte... onde há poder, ele se
exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto ele sempre
se exerce em determinada direção, com uns de um lado e ouros de outro; não se
sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”
(FOUCAULT,
Michel, Microfísica do poder)
Estamos acostumados a pensar em um poder
vindo de uma determina direção o submetendo todos que não o possui, em outras
palavras, o Estado seria o grande detentor do poder ou mesmo a Igreja na Idade
Média. Talvez seja por isso que se confundia tanto Igreja e Estado no período
medieval. O fato é que o poder da Igreja cresceu tanto que em certo momento a
relação perecia – apenas parecia – se dar de forma inversa ao invés do Estado
ter controle sobre a religião, essa tinha controle sobre aquele. Assim que o
Estado viu oportunidade de cortar a influencia da Igreja o fez.
O poder, no entanto, não tem origem apenas
no Estado, ele tem várias direções e produzidos em diversos espaços. Mas esses
poderes se relacionam entre e si e com o Estado. Esse tenta dominar aqueles
ocupando os espaços onde são produzidos. Esse fenômeno, chamado por Foucault de
governamentalização[14], é visto na sociedade atual, o Estado
se encarrega da saúde, do transportes, da educação, etc. Em suas palavras:
... o
Estado não é mais do que uma realidade compósita e ma abstração mistificada,
cuja importância é muito menor do que se acredita. O que é importante para
nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a estatização da
sociedade, mas o que chamaria de governamentalização do Estado.
E ainda:
... a
governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver.
Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentabilidade, ao mesmo
tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem
definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público
ou privado, o que é ou não estatal, etc.
Em Itaguaí, o governador ao ver o poder
construído por Simão, passou a se interessar por ele na perspectiva de
dominá-lo.
Ora, como pode existir poder fora do
Estado? É nessa questão que Foucault sugere que o poder “tem origem na produção de saber”[15],
ou seja, todo discurso tem uma intenção de verdade.
Em O Alienista não é diferente, Simão quer estudar todas as formas de loucuras,
todos os desatinos, nomeá-los. Assim, a
Casa Verde se torna um local de produção de saber
e também de verdade. Bacamarte é o
seu detentor. Se, é verdade que os hospitais do século XVIII eram na verdade um
morredouro, pois os médicos estavam mais interessados em deixar as doenças se
desenvolverem para conhecê-las e produzir verdades, assim também eram os
hospícios, pois, nas palavras de Foucault:
O
poder do médico lhe permite produzir doravante a realidade de uma doença mental
cuja propriedade é a de produzir fenômenos inteiramente acessíveis ao
conhecimento. A histérica era a doente perfeita, pois que fazia conhecer. Ela
transcrevia por si própria os efeitos do poder médico em formas que podiam ser
descritas pelo médico segundo um discurso cientificamente aceitável.
Dessa forma, fica evidente que o poder tem origem no saber
e que se exerce através do discurso. Se existem vários discursos e vários
saberes na sociedade então o poder emana de vários locais.
Porém,
nesse sentido só é possível entender o poder descendente[16], vindo de cima. Esse poder precisa ser
apropriado pelos indivíduos de forma que eles o retornem, o poder precisa de
uma base capilar[17]: “... quando penso na mecânica do poder,
penso na sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível
dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas
atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana”(Michel
Foucault, Microfísica do Poder).
Nesse
sentido os indivíduos fazem parte desse poder, eles também o exercem, como se
houvesse uma rede[18]
de poderes. Como diz Foucault:
O poder deve ser analisado como algo que
circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado
aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza
ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas ou indivíduos
não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer
sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centro de
transmissão[19]
Na obra de Machado de Assis isso de
manifesta quando do entendimento da população
de que Simão seria capaz de curar os loucos e da certeza de seus
interesses pela ciência dando condições ao poder ascendente[20]. O poder dessa forma não parte apenas
do alienista que detém a verdade, mas
dos sujeitos que se apropriam e também reproduzem esse discurso.
O
TIMONEIRO DA STULTIFERA NAVIS
“E
enquanto outrora a loucura dos homens consistia em ver apenas que o termo da
morte se aproximava, enquanto era necessário trazê-los de volta à consciência
através do espetáculo da morte, agora a sabedoria consistirá em denunciar a
loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são nada mais que
mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada
formará uma só e mesma entidade com a própria morte”
(FOUCAULT, Michel, História da Loucura. P. 16)
Se os homens temiam a morte tão próxima e
materializada nos leprosários, era também através dela que se tentava impor uma
ordem. Os detentores desse saber era a Igreja, conheciam o além, tinham contato
com Deus, cuidavam dos moribundos, e produziam um discurso que associava pecado a morte. Mas na era clássica os
homens não tinham medo da morte e procuravam desfrutar suas vidas sem se
preocupar com o pecado. E como disse Antonio Pereira acerca do pensamento de
Foucault “quando se rompe um processo, outros não pensados e planejados entram
cena”[21],
assim uma nova temática ganha força: a loucura.
Vários artistas fazem crítica às
insanidades humanas, um deles é Hyeronimus Bosch, em sua pintura “Nau dos
Loucos” – que dá nome ao titilo desse capítulo – mostra um navio com
tripulantes que realizam atos insanos, onde o timoneiro é provavelmente o Diabo
em forma de caveira em cima do galho de árvore. As pessoas são de vários
seguimentos sociais, inclusive padres. Sem que as pessoas percebam ao lado do
barco aparecem pessoas que roubam seus pertences. A água simboliza a falta de
direção do louco, ele vive a deriva; a caveira como diabo significa que estão
sendo dirigidos por espíritos do mau. E, sem que percebam estão sendo enganados
pelos ladrões. Ora, essa é a visão de Bosch sobre a loucura, sendo a maioria
das pessoas como ele as descreve então para elas Bosch é louco. Interessante
notar que a pesar de dar-se início a era da razão, onde a loucura se contrasta
com ela, não é com o pensamento racional que Bosch se sustenta para criticar a
loucura, mas sim com o cristão, justamente o qual a razão desejava suplantar.
A loucura, na razão, e na sua época, vai
ganhar um discurso produtor de saber e poder. Sendo assim, todos aqueles que
não agiam de acordo com a razão eram desatinados e precisavam sofrer reclusão e exclusão. Esse discurso ganhou um caráter normalizador[22]. Algo semelhante ocorre na obra de
Machado de Assis. Todos que não se enquadravam na ordem da normalidade eram
considerados loucos e logo após reclusos. Mas como excluir a loucura sem
excluir a razão? A loucura só existe em relação à razão a exclusão de uma
acarreta a exclusão da outra. Esses pensamentos foram ganhando espaço em
Bacamarte no início a loucura era uma ilha no oceano, depois um continente,
logo chegou à conclusão de que o normal era a anormalidade, sendo assim ele
seria o único louco da região. Com isso libera todos os reclusos e se trancafia
na Casa Verde. O timoneiro da nau dos loucos se percebe sendo guiado pela
loucura.
A
NOSOPOLÍTICA DO BRASIL IMPÉRIO
No governo de Dom Pedro II, foram
construídos vários sanatórios. A maioria deles tinha o nome de hospital de
alienados. A obra de Machado de Assis o Alienista foi publicada no ano de 1882,
contemporâneo ao funcionamento desses ofícios.
Abaixo colocamos um quadro com o ano e
nomes dos primeiros hospícios do Brasil.
Quadro 1
– Primeiros estabelecimentos ditos exclusivos para alienados
Província
|
Ano
|
Estabelecimento
|
São
Paulo
|
1852
|
Hospício Provisório de Alienados de São Paulo
(Rua São João)
|
Pernambuco
|
1864
|
Hospício de Alienados de Recife-Olinda (da
Visitação de Santa Isabel)
|
Pará
|
1873
|
Hospício
Provisório de Alienados (Belém, próximo ao Hospício dos Lázaros)
|
Bahia
|
1874
|
Asilo
de Alienados São João de Deus (Salvador)
|
Rio
Grande do Sul
|
1884
|
Hospício
de Alienados São Pedro (Porto Alegre)
|
Ceará
|
1886
|
Asilo
de Alienados São Vicente de Paulo (Fortaleza).
|
Antes desses hospícios muitos loucos eram
tratados pelas confrarias se destacando a Santa Casa de Misericórdia ou
colocados juntos aos criminosos na Cadeia Publica, no segundo império o Estado
passava a ter suas próprias casas de reclusão de alienados e subvencionava as
confrarias. Não havia médicos nesses locais e a forma de terapia era o trabalho
desses indivíduos. Alguns pesquisadores afirmam que nesses lugares havia
tortura e maus tratos, eram insalubres. Iam para lá órfãos, mendigos, loucos e
vários tipos de “indesejáveis”. A maioria dos reclusos eram negros.
A
Jornalista Daniela Arbex escreveu um livro intitulado “O Holocausto Brasileiro”
que conta como eram tratados os reclusos em um manicômio em Barbacena, Minas
Gerais. Segundo a autora morreram 60 mil pessoas neste local. Os insanos viam
de várias localidades de trem para o hospício. Ocorriam maus tratos e torturas
e os mortos eram vendidos para pesquisas médicas.
Provavelmente
a obra de Machado de Assis seja uma crítica a nosopolítica do Império, onde
além dos maus tratos era colocada nestes locais qualquer pessoa que fosse
considerada louca pelas autoridades. Alguns pesquisadores acreditam que muitos
homens, quando queriam se livrar de suas mulheres, diziam às autoridades que
elas estavam loucas para que fosse colocada no sanatório. O realismo é uma
forma de crítica à sociedade em seus vários aspectos, penso que o alienista não
foge desse contesto.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS,
Machado de. O alienista. In: Obra
Completa. Vol. II, Conto e Teatro. 1979.
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica.
São Paulo. Perspectivas S.A. 1997.
_________________ Microfísica do
poder. Organização e tradução de Roberto
Machado. Rio de Janeiro, Edições
Graal. 1979.
_________________ Vigiar e punir: história da violência
nas prisões. 5. ed. Petropólis: Vozes, 1987.
CHARTIER,
Roger. A História Cultural: entre práticas e
representações. Tradução Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
PEREIRA,
Antonio. A analítica do poder em Michel
Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora. 2003.
ODA, A. M. G. R., DALGALARRONDO, Paulo. História das primeiras instituições de alienados
do Brasil. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v. 12, n. 3. 2005
ARBEX,
Daniela. O holocausto brasileiro.
Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. Belo Horizonte.
Geração Editorial. 2014.
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