Ivson
Carlos Barros Nunes. História, UFRPE.
François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, foi um personagem de grande contribuição para a historiografia.
Suas contribuições para essa disciplina são inúmeras, pois seus escritos
pontuam elementos que só se tornarão importantes para essa profissão no século
XIX. Antes desse filósofo a história ainda era vista como uma extensão da
providência divina, escritores como Bossuet, por exemplo, atribuíam os
fenômenos e fatos históricos as intervenções de Deus. Assim, a história não era
vista de forma racional.
Segundo José da Assunção Barros, em
seu artigo “Voltaire: Considerações sobre
a Historiografia e a Filosofia da História”, escrito em 2012, o filósofo
foi o divisor de águas na questão de introduzir a cientificidade na História.
A verdade é que esse autor poderia ser
considerado o pai da historiografia, pois contribuem com elementos como o dever
do historiador e da história para a sociedade, teoria sobre as fábulas e
gêneses dos povos, teleologia da história, metodologia, a importância das
fontes, modalidades e campos da história, etc. Em todas essas questões Voltaire
pode ser visto como um pioneiro, inclusive foi ele o primeiro a usar o termo
“filosofia da história” (José da Assunção Barros), e a falar de uma rede
historiadores, fazendo dessa disciplina uma profissão.
Aqui, porém, irei me ater apenas a
questão da alteridade introduzida por esse autor no âmbito da historiografia,
pois essa questão ainda foi pouco explorada. Em autores como Barros ou Geraldo
Magedo Machado entram em discussão diversas questões, como por exemplo, em
Barros, Voltaire poderia ser encaixado em três épocas para a historiografia
vistas nesses três títulos: O VOLTAIRE “HISTORIADOR DE TIPO ANTIGO”; O
VOLTAIRE MODERNO, EM SUA CONEXÃO COM UMA NOVA HISTÓRIA EM FORMAÇÃO; e INTUIÇÕES
PARA UMA HISTÓRIA FUTURA. Mas sobre a questão da alteridade para a produção
historiográfica, apesar de ser citado em diversos momentos por esses autores e
outros, ainda está muito aquém das necessidades intelectuais dos historiadores.
Mas não basta analisar como o
Voltaire poderia ter contribuído para trazer o olhar do outro para a
historiografia, é preciso também perceber os limites que existiam dentro de sua
concepção de mundo para que esse método fosse implantado pela História, e como
a sociedade de época também pode ter interferido para que ele tivesse esse
limite. Não sentido, não apresentarei apenas as coisas construtivas de Voltaire
para a disciplina em questão, mas também o que seria, visto pelo historiador de
hoje uma, uma aberração. Penso que se algum autor trabalhou a contribuição na
alteridade de Voltaire, não tenha ido ao ponto de mostrar suas contradições
nesse mesmo aspecto.
Voltaire mostra uma grande
preocupação em conhecer os fatos históricos, porém percebe que muitos deles
podem ser falsos, e que além disso a história sempre é vista apenas do ponto de
vista da guerra, deixando de lado outras questões importantes. Ele acreditava
que para se compreender a história seria preciso estudar os documentos de
outras nações, pois elas trariam elementos que a nação de origem do historiador
não saberia. Nesse momento ele dá a importância de ver o ponto de vista de
outros povos, em vez de levar em consideração apenas o que é dito pela nação de
origem.
No entanto, ele vai ainda mais fundo
nessa questão de entender o outro, ele transcende a importância do documento de
nações estrangeiras que revelem coisas que o historiador não sabe, e passa a
perceber que também é importante conhecer os usos, costumes e crenças de outros
povos. Vejamos o que ele diz no trecho a seguir:
“Temos vinte histórias do estabelecimento dos
portugueses nas Índias; mas nenhuma delas nos deu a conhecer os diversos governos desses países, suas religiões, suas
antiguidades, os brâmanes, os discípulos de São João, os guebros, os baneanes.
Conservaram-nos, é bem verdade, as cartas de Xavier e dos seus sucessores.
Deram-nos histórias da Índia, feitas em
Paris, baseadas nesses missionários que não sabiam as línguas dos brâmanes. Repetem-nos em inúmeros
escritos que os indianos adoram o diabo. Capelães
de uma companhia de mercadores partem com esse preconceito; e desde que
veem nas costas de Romandel umas figuras simbólicas, não deixam de escrever que
são retratos do diabo, que estão no império dele, que vão combate-lo. Nem lhe
passa pela cabeça que nós é que adoramos
o diabo Mamon e que vamos levar-lhe nossos votos a seis mil línguas da
nossa pátria para ganhar dinheiro”[1]
(grifos meus)
Podemos encontrar nesse pequeno
trecho elementos de uma alteridade do historiador para com o povo estudado.
Logo no início da citação vemos que ele se preocupa em conhecer através da
história outros povos, e faz, dessa forma, uma crítica aos relatos feitos por
viajantes e mercadores que, apesar de terem escrito diversas história, forma
limitados no que diz respeitos as instituições que existem em outros povos.
O mais interessante é quando ele diz
que as histórias da Índia parecem que foram feitas em Paris, nesse momento ele
parece compreender a importância do “lugar do historiador”, que será usada mais
tarde pelos historicistas. É verdade que o Voltaire tem muito mais proximidade
com o que viria a ser no futuro o positivismo, não apenas por ser Francês, mas
por que é iluminista, e teria feito uma espécie de teleologia da história.
Porém esse pequeno elemento, a percepção de que quem escrevia de Paris sobre a
Índia, teria uma visão limitada, pode ser encarado, no meu ponto de vista, como
um precursor do historicismo.
É bem verdade que essa ideia não foi
desenvolvida o suficiente por Voltaire, e que talvez ele não tenha dado tanta
importância a essa questão, já que é somente nesse trecho que vemos essa
característica do autor, e talvez seja por isso que outros autores não tenha se
atentado para essa questão no filósofo.
O que vemos nesse trecho é algo que
vai além da questão da alteridade, é a percepção de que o historiador tem
lentes que são formadas pelo o seu “lugar”[2] de origem. É verdade que o
fato de perceber que a história estava sendo escrita pelo o olhar do Mesmo e não do Outro, tem muito mais relação com a alteridade, porém quando ele
afirma que esse Mesmo é Paris, é o
mercador, que não sabe a língua dos brâmanes, ele pode estar dando as bases da
questão da “lente” e do “lugar” do historiador, contribuindo dessa forma para o
historicismo.
Talvez seja muita ousadia dizer que
quem contribuiu para o historicismo alemão tenha sido um precursor do
positivismo francês, e dessa forma colocar o Voltaire como precursor de
Claudênius, porém acho que esse questionamento se faz necessário.
A questão da alteridade é vista,
ainda no trecho, quando ele fala que os mercadores partem com preconceitos. É
sabido que o filósofo escreveu sobre a tolerância, o que contribui enormemente
com a alteridade, porém aqui vemos a tolerância sendo aplicada para a
compreensão da mentalidade de outros povos.
Voltaire critica os mercadores que
diziam que os indianos adoravam ao diabo, então ele argumenta que quem adora o
diabo Mamon eram os europeus, e por isso acabavam vendo o diabo em outros
lugares. Aqui vemos mais uma vez a questão do lugar, pois o filósofo percebe
que a condição de cristão, e conhecedor da entidade maligna denominada diabo, faz
com que se veja em outros povos elementos que na verdade são da cultura de
origem do observador. Assim toda a descrição feita é com base no “lugar”.
Penso ainda, que o interesse em
entender o outro tenha contribuído para modalidades da história que só se
desenvolverão no futuro, como a história “vista de baixo”, e outros elementos
da história Cultural.
A primeira contradição que se
apresenta nesse autor em relação a alteridade é que ele teria uma visão
universalista, como diria José da Assunção Barros:
“Entre o historiador que se
rende à clara percepção das diferenças e o filósofo iluminista que anseia pela
apreensão da unidade da natureza humana, Voltaire tendeu, como se vê, a
acompanhar a tendência universalizadora predominante entre os filósofos do século
iluminista. Neste aspecto em particular, ele é um filósofo bem sintonizado com
o movimento das ideias iluministas, e afasta-se da valorização da diversidade
historiográfica que logo seria tomada como um fio condutor pelos historicistas
do século seguinte”[3]
Barros
teria visto que a falta de importância dada às festas populares, e as estátuas que
simbolizavam acontecimentos, como o de Ceres ter ensinado agricultura aos
homens, seria um elemento do universalismo iluminista de Voltaire. Ele estaria
desconsiderando a forma de pensar do povo, e seu imaginário. Porém, vemos que
essa visão sobre o Voltaire vai de encontro ao que vimos dele até agora nesse
artigo.
A verdade é que Voltaire vai ser
contra o uso de monumentos, festas e outros elementos como fonte histórica,
pois elas não representavam a verdade. Nesse sentido, penso que ele esteja
certo, ao fazer crítica às festas, e outras fontes, porém seu erro seria o de
não perceber que esses elementos poderia servir para a compreensão dos costumes
dos povos. E é aqui que ele se contradiz, pois se ele percebia a importância de
ser ver sem preconceito, de analisar tendo em vista seu lugar, não percebeu a
importância das festas, e estátuas para essa compreensão. Vejamos esse trecho:
“Somos naturalmente levados a crer que um
monumento erigido por uma nação com o fim de celebrar um acontecimento atesta a
certeza deste. No entanto, se esses monumentos não foram elevados por
contemporâneos, se celebram alguns fatos poucos verosímeis, provam acaso outra
coisa, a não ser que se quis consagrar uma opinião popular?” (Voltaire, p.
19)
Perceba que o questionamento é em
cima da veracidade do fato apresentado pelo monumento. Será que devemos
considerar as pinturas de Napoleão, ou as de Dom Pedro I como fontes históricas
inquestionáveis? É esse o questionamento feito pelo autor.
O filósofo iluminista consegue
revolucionar no que diz respeito a questionar fatos consagrados em imagens,
monumentos, e festa, e até mesmo nas fábulas. Mas põe um limite no que ele
mesmo teria dado início, que a compreensão da mentalidade de outros povos.
Vejamos o que ele fala da pintura:
“Os retratos ainda denotam, muitas vezes,
mais vontades de brilhar que de instruir. Os contemporâneos têm direito de
pintar o retrato dos homens de Estado com os quais negociaram, dos generais sob
cujo comando fizeram a guerra. Mas como é de se temer que o pincel seja guiado
pela paixão! Parece que os retratos que encontramos em Claredon são feitos com
mais imparcialidade, gravidade e sabedoria do que os que lemos com prazer no
cardeal de Retz” (Voltaire, p. 21)
Vemos
nesse trecho que ele reconhece que as pinturas podem ser feitas com o intuito
de passar algo, e assim não representariam o fato.
Essas contradições talvez fossem
impercebíveis naquele momento, a verdade é que apenas na atualidade é que se
pode falar de alteridade, de historicismo, etc., mas naquele momento essas
coisas estavam ainda nos seus embriões, e aqueles que portavam essas características
não sabiam que eram precursores das ideias que hoje conhecemos claramente.
Um exemplo dessas contradições pode
ser encontrado ainda no que diz respeito ao universalismo iluminista de
Voltaire. Nesse pensamento todos os homens são iguais, e inclusive se
desenvolveria de forma parecida, isso seria a base dos Direitos Humanos que
viriam mais tarde.
Parece, no entanto, que os povos da
África são considerados diferentes no que diz respeito a suas inteligentes,
como conciliar isso ao universalismo? Vejamos esse trecho:
“(...) e de humano só têm (os
albinos da África) a estatura do corpo, com a faculdade da palavra e do
pensamento, num grau muito distante do nosso” (Voltaire, p. 43)
Vemos que nem todos são iguais como
se pensa na universalidade iluminista. E o autor ainda deixa uma reflexão sobre
a possível origem dos negros:
“Fala-se dos sátiros em quase todos os
autores antigos. Não me parece que a existência deles tenha seja impossível;
ainda sufocam na Calábria alguns monstros postos no mundo pelas mulheres. Não é
impossível que, nos países quentes, macacos tenham subjugado mulheres.
Heródoto, no livro II, diz que durante sua viagem ao Egito, uma mulher se
acasalou em público com um bode, na providência de Mendes; e invoca em
testemunho todo o Egito. O Levítico, no capítulo 17, traz a proibição de se
unir com bodes e cabras. Portanto esses acasalamentos devem ter sido comuns;
enquanto não somos mais bem esclarecidos, é de se presumir que espécies
monstruosas podem ter nascido desses amores abomináveis. Mas, se existiram, não
podem ter influído sobre o gênero humano; e, como as mulas, que não geram, não
puderam desnaturar as outras raças” (Voltaire, p. 44)
Aqui ele parece acreditar que
monstros podem ter surgidos de transas de humanos e animais, ele não afirma que
os negros nasceram disso, porém perceba que ele entra nessa discussão
justamente quando fala das diferentes “raças” – ele usa o termo raça, pois naquele
momento era assim que se via – e quando ele diz que talvez um macaco tenha
subjugado uma mulher nos países quentes, o que ele quer dizer? No final ele diz
que se isso aconteceu é impossível que tenha dado origem a gerações de homens
pois como as mulas deveriam esses monstros serem estéreis. Por mais que ele
afirme isso no final, qualquer pessoa que lesse essa parte do macaco e da
mulher diria que os negros seriam produtos dessa mistura na visão de Voltaire.
Se ele não acreditava nisso, parece que sentiu uma certa tentação em acreditar.
Vimos que o autor tinha os elementos
da alteridade na historiografia, e que também tinha elementos do historicismo,
porém penso que tudo isso estaria no seu embrião, estaria num “corpo sem
órgãos”[4]. Se os autores não beberam
em Voltaire para desenvolver essas concepções, porém nele já estavam presentes
esses elementos. Outros estudos poderiam ser feitos no sentido de encontrar
ligações entre os futuros historicistas, como Claudênius, Vicco, Herder, e
outros com as ideais de Voltaire. E dessa forma traçar uma linha para a
alteridade e o historicismo.
Referências:
VOLTAIRE. Filosofia da História. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BARROS, José da Assunção. Voltaire: considerações sobre a
historiografia e a filosofia da história. Revista de Teoria da História Ano
3, Número 7, jun/2012 Universidade Federal de Goiás.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ:
vozes, 2008.